Post Blog - Perda Gestacional

Em uma formatura, conversando com uma querida amiga psicóloga, que teve a coragem de se especializar em tratar os delicados assuntos de gravidez, escutei a seguinte frase:

“O problema é que a gente só fala sobre as gestações que deram certo.”

Não podia estar mais certa. Cerca de 1/3 das gestações se interrompem espontaneamente. Milhões de mulheres passam por isso, em silêncio, em segredo.

Eu tive uma gestação que não deu certo. E escondi de todo mundo que deu. E me puni de todas as maneiras que pude. Passei por sofrimentos desnecessários, por acreditar que merecia. Senti vergonha e culpa até não poder mais. Mas eu não fiz nada de errado, não fracassei e não desejo mais carregar esse peso.

Com 25 anos, mesmo tomando todas as precauções recomendadas, tive uma gravidez acidental. Tão não planejada, que quando descobrimos eu já estava em uma fase adiantada. Em seguida, antes mesmo de ter conseguido processar essa informação, sofri um aborto espontâneo.

A sala de ecografia era de um silêncio ensurdecedor, que pareceu durar para sempre. “Acontece, melhor sorte da próxima vez” disse a técnica, com uma frieza própria de quem vê isso todos os dias, enquanto me entregava um papel para encaminhar a cirurgia “curetagem uterina de aborto retido”, fui para casa esperar a liberação do plano de saúde. Foram os três dias mais longos que vivi. Incapaz de estudar ou trabalhar. Sentia-me fria, tendo um cemitério interno. Ninguém nos pergunta o que sentimos, o que morreu com aquele feto. Certamente um pouco da mulher que ainda o carrega.

A passagem pelo hospital foi uma tortura. Não existe área das falhadas. Somos colocadas junto com todas as parturientes rechonchudas e radiantes. Através da cortina, enquanto eu começava o meu longo processo de sangramento, podia escutar diversas futuras mães fazendo ultrassom. A sala se enchia com o som dos batimentos cardíacos de bebês saudáveis. Eu só conseguia pensar no silêncio da minha barriga e chorar baixinho, rezando para não ser percebida ali, onde eu acreditava que não mereceria estar. Querendo desaparecer.

Todo o tempo fui tratada como se tivesse feito algo de errado. No transporte entre o bloco obstétrico e o cirúrgico me separaram do meu companheiro, dos meus óculos – quem tem cinco graus de miopia sabe desse valor – a receita de anestésicos feita pela minha ginecologista perdeu-se também. Fiquei em uma área de passagem, deitada sentindo o sangue escorrer. A dor era muita e me deixava desorientada, eu perdi o controle sobre minhas pernas, mas podia sentir elas se contorcendo.

Técnicos, enfermeiros e médicos abriam minha fralda (sim, fralda, se usa fralda para conter o sangue, segui usando fralda por dias) colocavam a mão dentro de mim sem pedir permissão, sem me olhar nos olhos, sem me dizer palavra. O anestesista me chamou de fresca (mais de uma vez) por estar chorando de dor, tristeza e confusão. Fizeram comentários a respeito de meus seios, dos meus piercings, das minhas tatuagens e dos pelos do meu corpo como se eu não pudesse ouvir. Para sofrer violência obstétrica, não precisa ter parto, basta ter útero.

Meu companheiro, que esteve do meu lado durante todo o processo, recebeu um tratamento bem diferente. Sua dedicação foi elogiada por vários profissionais. “Santo Julio”. Como se a gravidez que era nossa, uma vez que fracassada, tivesse tornado-se apenas problema meu e ele não tivesse mais o dever de estar ali. “Sabe, nessas situações em geral não se vê o pai, espero que tu estejas grata por ele.” A mensagem era clara: pobre homem bom, que merecia melhor do que a mulher que não foi capaz de carregar seu fruto. Aos homens o patriarcado perdoa tudo. Mas impõe frieza, quiseram roubar dele o seu luto, seu dever é partir para a próxima, espalhar a semente.

Incapaz de ficar em casa sozinha com o meu imenso vazio, aos poucos retornei ao trabalho. Com a benção de minhas chefes, por sorte duas mulheres compreensivas e amorosas. Tentei salvar o que restava do meu semestre na faculdade. De fraldas, fraca, doentia e sem fome. Perdi mais de 10kg sem querer. Ironicamente nunca fui tão elogiada, essa é nossa doença social que cobra das mulheres magreza acima de todas as coisas.

Eu lembro acima de tudo da solidão. Não só por que uma gravidez nos faz sentir muito acompanhadas, e interromper isso de repente é um choque. Principalmente por que foi o momento da vida que eu mais precisei de amigos, mas não soube pedir ajuda. Ao contrário, estava envergonhada, sem saber como justificar minha ausência e sem conseguir sequer abrir a boca (para mentir que fosse) sem chorar. Evaporei de todos os círculos sociais. Dei patadas em quem tentou me ajudar. Acreditava que todos que soubessem iriam me tratar com a mesma violência do hospital. Fracassada, culpada, fresca, fiasquenta, incapaz.

Essa história não terminou. Vou carregar comigo para sempre. Com ajuda de terapia e apoio da minha família consegui voltar a sorrir. Aos poucos minhas lembranças vão ficando menos manchadas de sangue e conseguimos pensar com carinho nos momentos de família que chegamos a ter, enchendo minha barriga de beijos e nossas cabeças de planos para um futuro que não chegou a ser. A tristeza às vezes bate feito onda, me pega de surpresa. Isso é próprio do luto. E eu quero poder falar sobre isso. Ter orgulho de sobreviver, e não vergonha. Não vou mais me isolar. Não vou guardar os segredos do patriarcado.

Estou escrevendo isso por que é algo que eu queria muito ter lido no ano passado. Queria saber que mais alguém (muitos alguéns) já passou por isso. Que eu não fiz nada de errado. Que eu não deveria me tratar tão mal, nem deixar outros me punirem por um crime que não existe.

Escrevo por que as histórias das mulheres já foram silenciadas demais. Eu tive uma gravidez interrompida e isso é ok.

Texto: Julia Corso (Recebido pelas Redes Sociais)


Mariane de Paula Melo
Psicóloga – CRP 06/140498

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